Descrição
Neste vídeo originalmente publicado a 28 de dezembro de 2018 em seu canal, o escritor e crítico literário brasileiro Rodrigo Gurgel comenta Essencial Kafka, coletânea da obra de Franz Kafka (1883 — 1924), o autor boêmio de língua alemã considerado um mestre que trata o absurdo como algo trivial, explorando o estranhamento, a opressão e a condição humana moderna — potencializando assim sua denúncia da loucura do mundo.
A partir da coletânea, organizada por Modesto Carone e publicada pela Companhia das Letras, Gurgel traça um panorama da vida e do trabalho do autor, com destaque para o conto Na Colônia Penal.
Kafka nasceu em Praga, então parte do Império Austro-Húngaro. Embora vivesse em uma região tcheca, escreveu exclusivamente em alemão e passou quase toda sua vida como cidadão austríaco. Era judeu, mas não professava tal fé, e mesmo assim lia com profundidade autores cristãos como Pascal e Kierkegaard. Segundo Gurgel, essa multiplicidade de heranças — germânica, judaica, eslava, moderna e religiosa — produziu um escritor que vivia sob forte tensão espiritual e existencial.
Sua vida foi marcada por fragilidades físicas e emocionais. Diagnosticado com tuberculose aos 34 anos, Kafka levou uma existência discreta, conciliando o trabalho burocrático em companhias de seguros com a escrita literária. Pediu que sua obra fosse destruída após sua morte, o que não foi feito graças à desobediência de seu amigo e testamenteiro Max Brod — e é por isso que a conhecemos hoje.
A leitura de Kafka, segundo Gurgel, não se encerra em explicações definitivas, mas, pelo contrário, trata-se de um autor envolto em ambiguidade e polissignificação. A interpretação da crítica é tão variada que Otto Maria Carpeaux chegou a falar numa “nuvem de equívocos” a seu redor, e ensaístas como Günther Anders e Rainer Stach comentaram o risco de saturação causado pela “indústria internacional kafkiana”.
Um dos contos comentados por Gurgel, como dissemos, é Na Colônia Penal, escrito em 1914, cuja história se passa numa colônia prisional isolada, onde uma elaborada máquina de execução escreve na carne dos condenados a sentença judicial que justifica sua morte. O oficial responsável pela execução apresenta a máquina a um explorador visitante, descrevendo-a com reverência, como se fosse uma obra de arte. A pena do condenado é desproporcional, quem será executado por ter desobedecido um superior — e toda a cena se passa num ambiente anormal, insólito, com relevo lunar e comportamentos marcados por desumanização.
O conto, segundo Gurgel, revela com maestria uma das técnicas mais poderosas de Kafka: o uso de linguagem simples para descrever situações grotescas, criando o que Anders chamou de “trivialidade do grotesco”, sendo que as partes da máquina de tortura recebem nomes cotidianos como “cama”, “desenhador” e “castelo”, o que acentua a ironia. Em vez de usar metáforas suaves, Kafka literaliza a violência do estado — a sentença não é apenas proclamada, mas cravada na carne do condenado, uma opressão institucional que se revela por meio de formas sutis de retórica jurídica que o autor desmonta com imagens concretas e brutais.
A crítica ao estado, ao direito e à racionalidade institucional permeia toda a narrativa, como quando, por exemplo, a máquina é usada contra o próprio oficial — numa inversão das posições — e entra em colapso, como se o sistema não suportasse ser aplicado a si mesmo. A alegoria, nesse sentido, atinge sistemas políticos que pretendem controlar tudo, mas desmoronam quando confrontados com sua própria lógica.
Ao comentar A Metamorfose, Gurgel destaca outro traço fundamental da obra de Kafka: tratar o absurdo como trivial, visto que acordar transformado em inseto é descrito como uma ocorrência rotineira, o que expõe com ainda mais força o absurdo das relações familiares e sociais. Kafka, diz o crítico, potencializa sua denúncia da loucura do mundo ao tornar essa loucura corriqueira.
Mas nem todo o universo kafkiano é marcado apenas pelo desespero. Nos diários e cartas do autor — e especialmente em sua relação com a obra de Pascal e Kierkegaard — é possível identificar a busca por um sentido mais elevado. Em Conversas com Kafka, Gustav Janouch transcreve um diálogo no qual Kafka diz que “Cristo é um abismo cheio de luz”, e que “é preciso fechar os olhos para não cair nele”. Há aí uma indicação de que, por trás do desespero, Kafka intui algo como graça, transcendência ou redenção — ainda que jamais consiga alcançá-la de modo pleno.
Segundo Rodrigo Gurgel, reduzir Kafka a um simples autor do pessimismo moderno é um erro, pois sua literatura é uma tentativa intensa de escapar dos sistemas fechados, de sondar as profundezas da experiência humana, e talvez — mesmo sem saber como — vislumbrar algo puro, verdadeiro e imutável.
Kafka merece uma leitura à altura de sua complexidade, e sua obra continua a lançar luz — por paradoxal que pareça — sobre o abismo da condição humana.
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- Duração: 33:18
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- Canal: Rodrigo Gurgel
- Marcador(es): Franz Kafka, Literatura, Rodrigo Gurgel
- Publicado por: Direita Realista
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